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PERO VAZ CAMINHA

A Carta de Caminha

Carta, de Pero Vaz de Caminha

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Edio de base Carta a El Rei D. Manuel, Dominus : So Paulo, 1963.

Senhor,

posto que o Capito-mor desta Vossa frota, e assim os outros capites escrevam a Vossa Alteza a notcia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegao achou, no deixarei de tambm dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer!

Todavia tome Vossa Alteza minha ignorncia por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui no h de pr mais do que aquilo que vi e me pareceu.

Da marinhagem e das singraduras do caminho no darei aqui conta a Vossa Alteza -- porque o no saberei fazer -- e os pilotos devem ter este cuidado.

E portanto, Senhor, do que hei de falar comeo:

E digo qu:

A partida de Belm foi -- como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de maro. E sbado, 14 do dito ms, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canrias, mais perto da Grande Canria. E ali andamos todo aquele dia em calma, vista delas, obra de trs a quatro lguas. E domingo, 22 do dito ms, s dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de So Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.

Na noite seguinte segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Atade com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrrio para poder ser !

Fez o capito suas diligncias para o achar, em umas e outras partes. Mas... no apareceu mais !

E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, at que tera-feira das Oitavas de Pscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha -- segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 lguas -- os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que do o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manh, topamos aves a que chamam furabuchos.

Neste mesmo dia, a horas de vspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra ch, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capito ps o nome de O Monte Pascoal e terra A Terra de Vera Cruz!

Mandou lanar o prumo. Acharam vinte e cinco braas. E ao sol-posto umas seis lguas da terra, lanamos ancoras, em dezenove braas -- ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda aquela noite. E quinta-feira, pela manh, fizemos vela e seguimos em direitura terra, indo os navios pequenos diante -- por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braas -- at meia lgua da terra, onde todos lanamos ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaramos a esta ancoragem s dez horas, pouco mais ou menos.

E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram primeiro.

Ento lanamos fora os batis e esquifes. E logo vieram todos os capites das naus a esta nau do Capito-mor. E ali falaram. E o Capito mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele comeou a ir-se para l, acudiram pela praia homens aos dois e aos trs, de maneira que, quando o batel chegou boca do rio, j l estavam dezoito ou vinte.

Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direo ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depam. Mas no pde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapua de linho que levava na cabea, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, midas que querem parecer de aljfar, as quais peas creio que o Capito manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu s naus por ser tarde e no poder haver deles mais fala, por causa do mar.

noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caar as naus. E especialmente a Capitaina. E sexta pela manh, s oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capito levantar ancoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batis e esquifes amarrados na popa, em direo norte, para ver se achvamos alguma abrigada e bom pouso, onde ns ficssemos, para tomar gua e lenha. No por nos j minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam j na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capito aos navios pequenos que fossem mais chegados terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.

E velejando ns pela costa, na distncia de dez lguas do stio onde tnhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrs deles. E um pouco antes de sol-psto amainaram tambm, talvez a uma lgua do recife, e ancoraram a onze braas.

E estando Afonso Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do Capito, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas no os aproveitou. Logo, j de noite, levou-os Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e festa.

A feio deles serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso so de grande inocncia. Ambos traziam o beio de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mo travessa, e da grossura de um fuso de algodo, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beio; e a parte que lhes fica entre o beio e os dentes feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que no os magoa, nem lhes pe estorvo no falar, nem no comer e beber.

Os cabelos deles so corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrs, uma espcie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutio e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeio branda como, de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e no fazia mngua mais lavagem para a levantar.

O Capito, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos ps uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoo. E Sancho de Tovar, e Simo de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corra, e ns outros que aqui na nau com ele amos, sentados no cho, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capito; nem a algum. Todavia um deles fitou o colar do Capito, e comeou a fazer acenos com a mo em direo terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E tambm olhou para um castial de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castial, como se l tambm houvesse prata!

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capito traz consigo; tomaram-no logo na mo e acenaram para a terra, como se os houvesse ali.

Mostraram-lhes um carneiro; no fizeram caso dele.

Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e no lhe queriam pr a mo. Depois lhe pegaram, mas como espantados.

Deram-lhes ali de comer: po e peixe cozido, confeitos, fartis, mel, figos ados. No quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lanavam fora.

Trouxeram-lhes vinho em uma taa; mal lhe pam a boca; no gostaram dele nada, nem quiseram mais.

Trouxeram-lhes gua em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas no beberam; apenas lavaram as bocas e lanaram-na fora.

Viu um deles umas contas de rosrio, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lanou-as ao pescoo; e depois tirou-as e meteu-as em volta do brao, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capito, como se dariam ouro por aquilo.

Isto tomvamos ns nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto no queramos ns entender, por que lho no havamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E ento estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais no eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.

O Capito mandou pr por baixo da cabea de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforava-se por no a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.

Sbado pela manh mandou o Capito fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis a sete braas de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram em cinco ou seis braas -- ancoradouro que to grande e to formoso de dentro, e to seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus foram distribudas e ancoradas, vieram os capites todos a esta nau do Capito-mor. E daqui mandou o Capito que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapua vermelha e um rosrio de contas brancas de osso, que foram levando nos braos, e um cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para l ficar, um mancebo degredado, criado de dom Joo Telo, de nome Afonso Ribeiro, para l andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mos. Aqueles que ns levamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os depam. Mas no se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando saram os que ns levvamos, e o mancebo degredado com eles. E sados no pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E aram um rio que a corre, de gua doce, de muita gua que lhes dava pela braga. E muitos outros com eles. E foram assim correndo para alm do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou at l. Mas logo o tornaram a ns. E com ele vieram os outros que ns levramos, os quais vinham j nus e sem carapuas.

E ento se comearam de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batis, at que mais no podiam. E traziam cabaas d'gua, e tomavam alguns barris que ns levvamos e enchiam-nos de gua e traziam-nos aos batis. No que eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lanavam-nos da mo. E ns tomvamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.

Levava Nicolau Coelho cascavis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mo. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuas de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar.

Dali se partiram os outros, dois mancebos, que no os vimos mais.

Dos que ali andavam, muitos -- quase a maior parte --traziam aqueles bicos de osso nos beios.

E alguns, que andavam sem eles, traziam os beios furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam trs daqueles bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.

E andavam l outros, quartejados de cores, a saber metade deles da sua prpria cor, e metade de tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques.

Ali andavam entre eles trs ou quatro moas, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, to altas e to cerradinhas e to limpas das cabeleiras que, de as ns muito bem olharmos, no se envergonhavam.

Ali por ento no houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha que se no entendia nem ouvia ningum. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e aram-se para alm do rio. E saram trs ou quatro homens nossos dos batis, e encheram no sei quantos barris d'gua que ns levvamos. E tornamo-nos s naus. E quando assim vnhamos, acenaram-nos que voltssemos. Voltamos, e eles mandaram o degredado e no quiseram que ficasse l com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou trs carapuas vermelhas para l as dar ao senhor, se o l houvesse. No trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas ento Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de ns, a aquele que o da primeira agasalhara. E ento veio-se, e ns levamo-lo.

Esse que o agasalhou era j de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como So Sebastio. Outros traziam carapuas de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moas era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era to bem feita e to redonda, e sua vergonha to graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feies envergonhara, por no terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como ns.

E com isto nos tornamos, e eles foram-se.

tarde saiu o Capito-mor em seu batel com todos ns outros capites das naus em seus batis a folgar pela baa, perto da praia. Mas ningum saiu em terra, por o Capito o no querer, apesar de ningum estar nela. Apenas saiu -- ele com todos ns -- em um ilhu grande que est na baa, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo est de todas as partes cercado de gua, de sorte que ningum l pode ir, a no ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos ns, bem uma hora e meia. E pescaram l, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe mido, no muito. E depois volvemo-nos s naus, j bem noite.

Ao domingo de Pascoela pela manh, determinou o Capito ir ouvir missa e sermo naquele ilhu. E mandou a todos os capites que se arranjassem nos batis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilho naquele ilhu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos ns outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoo.

Ali estava com o Capito a bandeira de Cristo, com que sara de Belm, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.

Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e ns todos lanados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregao, da histria evanglica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se Cruz, sob cuja obedincia viemos, que veio muito a propsito, e fez muita devoo.

Enquanto assistimos missa e ao sermo, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando ns sentados atendamos a pregao, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e comearam a saltar e danar um pedao. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou trs que l tinham -- as quais no so feitas como as que eu vi; apenas so trs traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, no se afastando quase nada da terra, s at onde podiam tomar p.

Acabada a pregao encaminhou-se o Capito, com todos ns, para os batis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direo terra para armos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capito, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E ns todos trs dele, a distncia de um tiro de pedra.

Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos gua, metendo-se nela at onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pr em terra; e outros no os punham.

Andava l um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas no j que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas at baixo, mas os vazios com a barriga e estmago eram de sua prpria cor. E a tintura era to vermelha que a gua lha no comia nem desfazia. Antes, quando saa da gua, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaas d'gua; e acenavam aos do esquife que sassem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capito. E viemo-nos s naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por ento ficaram.

Neste ilhu, onde fomos ouvir missa e sermo, espraia muito a gua e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto l estvamos foram alguns buscar marisco e no no acharam. Mas acharam alguns camares grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Tambm acharam cascas de berbiges e de amijoas, mas no toparam com nenhuma pea inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capites a esta nau, por ordem do Capito-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que ns podamos saber, por irmos na nossa viagem.

E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resoluo foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por fora um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.

E concordaram em que no era necessrio tomar por fora homens, porque costume era dos que assim fora levavam para alguma parte dizerem que h de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informao da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixssemos do que eles dariam se os levassem por ser gente que ningum entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem to bem dizer que muito melhor estoutros o no digam quando c Vossa Alteza mandar.

E que portanto no cuidssemos de aqui por fora tomar ningum, nem fazer escndalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partssemos.

E assim ficou determinado por parecer melhor a todos.

Acabado isto, disse o Capito que fssemos nos batis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas tambm para folgarmos.

Fomos todos nos batis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, boca do rio, para onde ns amos; e, antes que chegssemos, pelo ensino que dantes tinham, pam todos os arcos, e acenaram que sassemos. Mas, tanto que os batis pam as proas em terra, aram-se logo todos alm do rio, o qual no mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos aram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuas de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. aram alm tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E ento o Capito fez que o tomassem ao colo dois homens e ou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava no seria mais que aquela do costume. Mas logo que o Capito chamou todos para trs, alguns se chegaram a ele, no por o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, j ava para aqum do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas j ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.

E ento tornou-se o Capito para aqum do rio. E logo acudiram muitos beira dele.

Ali vereis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Tambm andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, no pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho at o quadril e a ndega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e tambm os colos dos ps; e suas vergonhas to nuas, e com tanta inocncia assim descobertas, que no havia nisso desvergonha nenhuma.

Tambm andava l outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de modo que no se lhe viam seno as perninhas. Mas nas pernas da me, e no resto, no havia pano algum.

Em seguida o Capito foi subindo ao longo do rio, que corre rente praia. E ali esperou por um velho que trazia na mo uma p de almadia. Falou, enquanto o Capito estava com ele, na presena de todos ns; mas ningum o entendia, nem ele a ns, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejvamos saber se o havia na terra.

Trazia este velho o beio to furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E o Capito lha fez tirar. E ele no sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capito para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaas sobre isso. E ento enfadou-se o Capito, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; no por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capito, creio, para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza.

Andamos por a vendo o ribeiro, o qual de muita gua e muito boa. Ao longo dele h muitas palmeiras, no muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles.

Depois tornou-se o Capito para baixo para a boca do rio, onde tnhamos desembarcado.

E alm do rio andavam muitos deles danando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mos. E faziam-no bem. ou-se ento para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavm, o qual homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a danar com eles, tomando-os pelas mos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de danarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no cho, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.

E ento ou o rio o Capito com todos ns, e fomos pela praia, de longo, ao o que os batis iam rentes terra. E chegamos a uma grande lagoa de gua doce que est perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar apaulada por cima e sai a gua por muitos lugares.

E depois de armos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que se recolhiam aos batis. E levaram dali um tubaro que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lanou-o na praia.

Bastar que at aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mo para outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ningum no lhes ousa falar de rijo para no se esquivarem mais. E tudo se a como eles querem -- para os bem amansarmos !

Ao velho com quem o Capito havia falado, deu-lhe uma carapua vermelha. E com toda a conversa que com ele houve, e com a carapua que lhe deu tanto que se despediu e comeou a ar o rio, foi-se logo recatando. E no quis mais tornar do rio para aqum. Os outros dois o Capito teve nas naus, aos quais deu o que j ficou dito, nunca mais aqui apareceram -- fatos de que deduzo que gente bestial e de pouco saber, e por isso to esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me conveno que so como aves, ou alimrias montezinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que s mansas, porque os seus corpos so to limpos e to gordos e to formosos que no pode ser mais! E isto me faz presumir que no tem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Ns pelo menos no vimos at agora nenhumas casas, nem coisa que se parea com elas.

Mandou o Capito aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andou l um bom pedao, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e no o quiseram l consentir. E deram-lhe arcos e setas; e no lhe tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo aps ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e ento mandaram-no vir. Disse que no vira l entre eles seno umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito grandes, como as de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos s naus, j quase noite, a dormir.

Segunda-feira, depois de comer, samos todos em terra a tomar gua. Ali vieram ento muitos; mas no tantos como as outras vezes. E traziam j muito poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de ns; mas depois pouco a pouco misturaram-se conosco; e abraavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se ou a coisa que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com moas e mulheres. E trouxeram de l muitos arcos e barretes de penas de aves, uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capito h de mandar uma amostra a Vossa Alteza.

E segundo diziam esses que l tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feio como em pano de ras, e todos com os beios furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ourios verdes, de rvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam cheios de uns gros vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.

Todos andam rapados at por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.

Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois dedos.

E o Capito mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meter-se entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com que eles folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem l esta noite.

Foram-se l todos; e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma lgua e meia a uma povoao, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram to compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas de tbuas, e cobertas de palha, de razovel altura; e todas de um s espao, sem repartio alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra d, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e no quiseram que l ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram l por cascavis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuas de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, espcie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas ver, porque o Capito vo-las h de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e ns tornamo-nos s naus.

Tera-feira, depois de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para ns, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e met-las nos batis. E lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazamos a lenha, construam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles no tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas viram l. Era j a conversao deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havamos de fazer.

E o Capito mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem l aldeia e que de modo algum viessem a dormir s naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.

Enquanto andvamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas rvores; verdes uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haver muitos nesta terra. Todavia os que vi no seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves no vimos ento, a no ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vrios diziam que viram rolas, mas eu no as vi. Todavia segundo os arvoredos so mui muitos e grandes, e de infinitas espcies, no duvido que por esse serto haja muitas aves!

E cerca da noite ns volvemos para as naus com nossa lenha.

Eu creio, Senhor, que no dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos so pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas so canas aparadas, conforme Vossa Alteza ver alguns que creio que o Capito a Ela h de enviar.

Quarta-feira no fomos em terra, porque o Capito andou todo o dia no navio dos mantimentos a despej-lo e fazer levar s naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar que para l foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capito ontem ordenara que de toda maneira l dormissem, tinham voltado j de noite, por eles no quererem que l ficassem. E traziam papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferena de terem o bico branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu nau, queriam vir com ele, alguns; mas ele no itiu seno dois mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou pensar e cur-los mui bem essa noite. E comeram toda a rao que lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lenis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E no houve mais este dia que para escrever seja.

Quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manh, e fomos em terra por mais lenha e gua. E em querendo o Capito sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hspedes. E por ele ainda no ter comido, pam-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente laco cozido frio, e arroz. No lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o no bebiam bem.

Acabado o comer, metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco monts, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no beio; e porque se lhe no queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereo da parte de trs de sorte que segurasse, e meteu-a no beio, assim revolta para cima; e ia to contente com ela, como se tivesse uma grande jia. E tanto que samos em terra, foi-se logo com ela. E no tornou a aparecer l.

Andariam na praia, quando samos, oito ou dez deles; e de a a pouco comearam a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuas e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dvamos, e alguns deles bebiam vinho, ao o que outros o no podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o ho de beber de boa vontade! Andavam todos to bem dispostos e to bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batis. E estavam j mais mansos e seguros entre ns do que ns estvamos entre eles.

Foi o Capito com alguns de ns um pedao por este arvoredo at um ribeiro grande, e de muita gua, que ao nosso parecer o mesmo que vem ter praia, em que ns tomamos gua. Ali descansamos um pedao, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que tanto e tamanho e to basto e de tanta qualidade de folhagem que no se pode calcular. H l muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.

Ao sairmos do batel, disse o Capito que seria bom irmos em direitura cruz que estava encostada a uma rvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanh, sexta-feira, e que nos pusssemos todos de joelhos e a beijssemos para eles verem o acatamento que lhe tnhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que l estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beij-la.

Parece-me gente de tal inocncia que, se ns entendssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristos, visto que no tm nem entendem crena alguma, segundo as aparncias. E portanto se os degredados que aqui ho de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, no duvido que eles, segundo a santa teno de Vossa Alteza, se faro cristos e ho de crer na nossa santa f, qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente boa e de bela simplicidade. E imprimir-se- facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que no foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa f catlica, deve cuidar da salvao deles. E prazer a Deus que com pouco trabalho seja assim!

Eles no lavram nem criam. Nem h aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado ao viver do homem. E no comem seno deste inhame, de que aqui h muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as rvores de si deitam. E com isto andam tais e to rijos e to ndios que o no somos ns tanto, com quanto trigo e legumes comemos.

Nesse dia, enquanto ali andavam, danaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem mais amigos nossos do que ns seus. Se lhes a gente acenava, se queriam vir s naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os convidramos a todos, todos vieram. Porm no levamos esta noite s naus seno quatro ou cinco; a saber, o Capito-mor, dois; e Simo de Miranda, um que j trazia por pagem; e Aires Gomes a outro, pagem tambm. Os que o Capito trazia, era um deles um dos seus hspedes que lhe haviam trazido a primeira vez quando aqui chegamos -- o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmo; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de cama, de colches e lenis, para os mais amansar.

E hoje que sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manh, samos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capito o stio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele com todos ns outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procisso. Eram j a quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. amos o rio, ao longo da praia; e fomos coloc-la onde havia de ficar, que ser obra de dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqenta, ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao p dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses j ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como ns. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em p, com as mos levantadas, eles se levantaram conosco, e alaram as mos, estando assim at se chegar ao fim; e ento tornaram-se a assentar, como ns. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se pam assim como ns estvamos, com as mos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoo.

Estiveram assim conosco at acabada a comunho; e depois da comunho, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o Capito com alguns de ns outros. E alguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estvamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqenta ou cinqenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estvamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para o cu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e ns assim o tomamos!

Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apstolos cujo o dia, tratando no fim da pregao desse vosso prosseguimento to santo e virtuoso, que nos causou mais devoo.

Esses que estiveram sempre pregao estavam assim como ns olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregao, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lanassem a cada um sua ao pescoo. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao p da cruz; e ali lanava a sua a todos -- um a um -- ao pescoo, atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mos. Vinham a isso muitos; e lanavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqenta. E isto acabado -- era j bem uma hora depois do meio dia -- viemos s naus a comer, onde o Capito trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o cu, (e um seu irmo com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.

E segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente, no lhes falece outra coisa para ser toda crist, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como ns mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adorao tm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos sero tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se algum vier, no deixe logo de vir clrigo para os batizar; porque j ento tero mais conhecimentos de nossa f, pelos dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje tambm comungaram.

Entre todos estes que hoje vieram no veio mais que uma mulher, moa, a qual esteve sempre missa, qual deram um pano com que se cobrisse; e pam-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, no se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocncia desta gente tal que a de Ado no seria maior -- com respeito ao pudor.

Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocncia vive se se convertera, ou no, se lhe ensinarem o que pertence sua salvao.

Acabado isto, fomos perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.

Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficaro mais dois grumetes, que esta noite se saram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais no vieram mais. E cremos que ficaro aqui porque de manh, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.

Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, at outra ponta que contra o norte vem, de que ns deste porto houvemos vista, ser tamanha que haver nela bem vinte ou vinte e cinco lguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda ch e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta toda praia... muito ch e muito formosa. Pelo serto nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, no podamos ver seno terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito extensa.

At agora no pudemos saber se h ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achvamos como os de l. guas so muitas; infinitas. Em tal maneira graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se- nela tudo; por causa das guas que tem!

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que ser salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lanar. E que no houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegao de Calicute bastava. Quanto mais, disposio para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa f!

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pr assim pelo mido.

E pois que, Senhor, certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso servio for, Vossa Alteza h de ser de mim muito bem servida, a Ela peo que, por me fazer singular merc, mande vir da ilha de So Tom a Jorge de Osrio, meu genro -- o que d'Ela receberei em muita merc.

Beijo as mos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha.

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